Clive Barker, um dos mais prolíficos autores do horror contemporâneo, deu vida a um dos personagens mais icônicos e perturbadores da ficção com a história Candyman. Originalmente intitulado The Forbidden e publicado como parte da antologia Books of Blood (1984), o conto serviu como base para o filme Candyman (1992), que expandiu o universo criado por Barker e trouxe uma reflexão sombria sobre temas como lendas urbanas, raça, classe e medo coletivo.
O Enredo de The Forbidden:
A história se passa em uma Inglaterra urbana, onde Helen Lyle, uma estudante universitária, pesquisa sobre grafites e arte urbana para sua tese. Durante suas investigações em uma área empobrecida, Helen descobre a lenda do Candyman, uma figura mitológica que supostamente aparece quando seu nome é repetido cinco vezes diante de um espelho. Candyman é descrito como um ser com um gancho no lugar da mão e coberto de abelhas, representando uma figura de terror absoluto para a comunidade local.
Ao longo de sua pesquisa, Helen desafia a lenda ao tentar desvendar suas origens. Ela, no entanto, subestima o poder das histórias populares. Conforme investiga mais profundamente, o terror se torna real quando o Candyman surge e começa a perseguir sua vida e sanidade.
A lenda urbana como construção social:
Uma das grandes forças de Candyman é a maneira como Barker utiliza a lenda urbana para explorar o pavor coletivo e as dinâmicas sociais nas áreas marginalizadas. Inspirado por contos como o de Bloody Mary e outras figuras lendárias que parecem ganhar vida através da repetição e do medo, Candyman é a personificação do medo que atravessa gerações e comunidades.
Barker parece sugerir que a verdadeira força de tais mitos não reside em seu conteúdo sobrenatural, mas na forma como são incorporados pela sociedade. Lendas urbanas são maneiras de canalizar medos e angústias sociais — sobre violência, pobreza, raça e injustiça. Candyman emerge como o produto de uma comunidade que carrega traumas históricos, reprimidos e coletivizados. Ele é uma manifestação desses medos, que são tanto sociais quanto psicológicos.
O Candyman: figura do terror e símbolo racial
O personagem de Candyman, embora mitológico, ganha dimensões profundas quando o filme de 1992 transpõe a narrativa para os EUA e introduz a questão racial de forma mais explícita. No filme, a origem do Candyman é ligada ao racismo do século XIX, quando Daniel Robitaille, um homem negro talentoso, é brutalmente assassinado por se apaixonar por uma mulher branca. Ele é linchado, tem sua mão decepada e é coberto por mel para ser atacado por abelhas, antes de ser queimado vivo. Essa origem brutal reflete a violência histórica do racismo, tornando Candyman um símbolo do trauma racial e das cicatrizes deixadas pela segregação e pela discriminação.
No conto de Barker, embora a questão racial não seja o foco, Candyman também emerge de uma cultura marginalizada, das camadas oprimidas da sociedade. É uma figura de vingança, que se ergue das sombras da desigualdade para aterrorizar aqueles que o desafiam ou negligenciam o poder dessas histórias.
O horror psicológico e urbano
O verdadeiro terror em Candyman não vem apenas do monstro com o gancho, mas da forma como Barker manipula o psicológico. Helen, ao investigar a lenda, gradualmente perde a capacidade de distinguir entre realidade e mito. O terror de Candyman está enraizado em como ele destrói a percepção da realidade, jogando com o medo de que nossa compreensão do mundo pode ser completamente destruída por algo tão simples quanto uma história.
As paisagens urbanas também desempenham um papel essencial na narrativa. Barker usa o cenário da cidade como um símbolo da decadência e do abandono social, onde a desigualdade se transforma em terreno fértil para a criação de monstros mitológicos. A presença de grafites que retratam o Candyman e a arte que Helen investiga sugerem que a violência e o medo estão gravados nas próprias paredes da cidade. O espaço urbano, portanto, se torna parte do terror, um reflexo da divisão entre os centros privilegiados e as periferias marginalizadas.
Análise sociológica do medo e do mito
Do ponto de vista sociológico, a obra de Barker toca em uma ideia que estudiosos como Jan Harold Brunvand exploraram — a persistência e o impacto das lendas urbanas como narrativas que refletem ansiedades e tensões sociais. O Candyman, como outras lendas urbanas, funciona como um mecanismo de controle e aviso, uma forma de a comunidade estruturar seus medos em torno de uma figura externa que pode ser evitada se certas regras forem seguidas. O mito cria fronteiras: entre os que acreditam e os que não acreditam, entre os que têm o privilégio de se afastar do medo (como Helen, inicialmente) e os que vivem com ele diariamente.
Na obra de Barker, o Candyman é tanto uma metáfora quanto um terror literal. Ele representa a dor e a violência estrutural que as comunidades marginalizadas enfrentam, mas também um lembrete de que o medo, seja ele real ou imaginado, tem o poder de controlar e moldar vidas. A lenda não é apenas um produto do passado; ela é vivida, recriada e reforçada pelas condições sociais do presente.
Conclusão
Clive Barker, com sua habilidade de criar horrores tão mitológicos quanto psicológicos, criou em Candyman uma narrativa poderosa que vai além do simples entretenimento de terror. Sua obra explora como as lendas urbanas se formam, como os mitos urbanos se infiltram nas consciências coletivas e como o medo — nas suas várias formas — pode dominar tanto a mente individual quanto a sociedade. Candyman não é apenas um monstro, mas uma reflexão sobre o poder que as histórias têm de moldar e destruir realidades. Ao ler a obra de Barker, somos confrontados com o fato de que, muitas vezes, os maiores horrores nascem não de entidades sobrenaturais, mas das próprias estruturas sociais que criamos e perpetuamos.
Comentários
Postar um comentário