A Hora do Lobisomem: Stephen King e Sua Visão Sombria da Licantropia [SPOILER]

"A Hora do Lobisomem" (Cycle of the Werewolf, 1983), de Stephen King, é uma obra que explora uma das figuras mais icônicas do terror: o lobisomem. Em uma narrativa relativamente curta, King consegue trazer à tona todo o mistério, terror e sofrimento associados a essa lenda, ao mesmo tempo em que acrescenta sua marca característica de realismo, relacionamentos complexos e desenvolvimento psicológico dos personagens. Embora seja uma novela, A Hora do Lobisomem mistura a tensão de uma história de horror com a estrutura episódica de um conto de fadas sombrio, onde cada mês do ano traz uma nova revelação sobre a besta que assombra a pequena cidade de Tarker’s Mills.


Estrutura e Enredo

A narrativa de A Hora do Lobisomem se passa ao longo de um ano, com cada capítulo representando um mês, começando em janeiro e terminando em dezembro. Essa estrutura peculiar é uma das características que tornam o livro tão interessante e único dentro da vasta bibliografia de King. Cada mês traz um novo ataque, um novo personagem, e revela mais sobre o monstro que aterroriza a cidade.

A história se passa em Tarker's Mills, uma pacata cidadezinha do Maine, que é repentinamente abalada por uma série de mortes brutais e inexplicáveis. À medida que os corpos começam a aparecer, a suspeita de que há algo sobrenatural à solta começa a crescer entre os moradores. Não demora muito para que a verdade seja revelada: a cidade está sendo aterrorizada por um lobisomem.

A trama principal gira em torno de Marty Coslaw, um garoto de 10 anos que é cadeirante. Ao longo do ano, Marty se torna o único sobrevivente de um ataque direto do lobisomem e é, também, o único que consegue juntar as pistas que levam à verdadeira identidade da criatura. Com a ajuda de seu tio Al, Marty consegue identificar o lobisomem e bolar um plano para acabar com a criatura antes que ele destrua ainda mais vidas.

Personagens Centrais

1. Marty Coslaw: O herói inesperado da história, Marty é um garoto corajoso e inteligente que, apesar de ser cadeirante, não se deixa intimidar por sua deficiência física. Ele é o primeiro a sobreviver a um encontro com o lobisomem e se torna a figura central na luta contra a criatura. O fato de Marty ser uma criança vulnerável, mas ainda assim extremamente determinado, é um dos elementos que tornam o livro tão cativante.

2. O Lobisomem: King aborda a licantropia de maneira clássica, mas com uma profundidade psicológica característica de seus monstros. O lobisomem não é apenas uma besta irracional; ele é um ser humano transformado, e essa dualidade entre homem e monstro é explorada ao longo da história. A revelação de quem é o lobisomem (algo que é mantido em segredo por grande parte do livro) é um momento impactante, mostrando que até mesmo aqueles que parecem inocentes podem esconder segredos monstruosos.

3. Reverendo Lester Lowe: A identidade do lobisomem é revelada como sendo o reverendo da cidade, Lester Lowe, um homem que sofre profundamente por sua maldição, mas que, ao mesmo tempo, se justifica em seus atos assassinos. Ele acredita que está "purificando" as pessoas ao matá-las, o que adiciona uma camada de complexidade moral e religiosa ao personagem, algo comum nas obras de King.

4. Tio Al: Um dos personagens de apoio mais importantes, o tio de Marty, Al, é quem ajuda o garoto a elaborar um plano para derrotar o lobisomem. Al é uma figura positiva e protetora na vida de Marty, contrastando com a violência e o medo representados pelo lobisomem.

Temas Principais

1. A Besta Interior: Em A Hora do Lobisomem, Stephen King explora a dualidade entre o homem e a fera. O reverendo Lowe, como lobisomem, é uma metáfora para os demônios internos que todos os seres humanos carregam consigo. King frequentemente utiliza o horror como um meio de examinar a psicologia humana, e aqui ele faz isso ao mostrar que a verdadeira monstruosidade pode residir dentro de qualquer um de nós. O lobisomem, nesse sentido, representa a irracionalidade, o lado sombrio do ser humano que emerge em momentos de desespero ou falta de controle.

2. O Terror do Quotidiano: Como em muitas obras de King, a ideia de que o terror pode se manifestar em qualquer lugar — até mesmo nas pequenas cidades tranquilas como Tarker's Mills — é um tema central. A transformação de uma cidadezinha pacata em um cenário de horror é uma marca registrada do autor, que transforma o comum em algo extraordinário e aterrorizante.

3. Inocência e Coragem: Marty Coslaw é um personagem que representa a inocência e, ao mesmo tempo, a coragem. Ele é uma criança, limitada fisicamente, mas sua determinação e inteligência o tornam o herói improvável da história. King frequentemente coloca personagens vulneráveis em posições de força, explorando como a bravura pode surgir mesmo nas situações mais assustadoras e improváveis.

4. O Poder da Fé e da Moralidade: O fato de o lobisomem ser o reverendo da cidade acrescenta uma dimensão moral e religiosa ao conto. Lowe acredita que sua condição é uma forma de punição divina ou, até mesmo, uma missão para purificar os pecadores, revelando um conflito entre a fé e a monstruosidade. Isso questiona as fronteiras entre o bem e o mal, um tema comum nas histórias de King.


O Lobisomem e Suas Origens Literárias

Stephen King utiliza o arquétipo clássico do lobisomem, mas, como sempre, adiciona sua própria visão ao mito. A lenda do lobisomem é uma das mais antigas e difundidas no folclore mundial, associada à transformação involuntária ou voluntária de um ser humano em uma criatura bestial durante a lua cheia. Nas mãos de King, o lobisomem é tanto uma maldição física quanto psicológica, representando não apenas a transformação do corpo, mas também a corrupção da alma.

Diferente de outras representações de lobisomens, King humaniza a criatura ao dar ao reverendo Lowe uma voz, um motivo e uma justificação para seus atos. O terror em A Hora do Lobisomem vem não apenas da violência gráfica dos ataques da criatura, mas também do fato de que ela é, em última análise, um ser humano lutando com sua própria monstruosidade interior.

Adaptações

A Hora do Lobisomem foi adaptada para o cinema em 1985 no filme Silver Bullet (Bala de Prata, no Brasil). A adaptação é fiel à história original, mantendo grande parte da estrutura episódica e da atmosfera de terror. Corey Haim interpretou Marty Coslaw, e Gary Busey assumiu o papel de seu tio Al. A produção é lembrada por seus efeitos práticos e por capturar a tensão crescente entre os personagens, especialmente na relação entre Marty e o lobisomem.

Embora Silver Bullet tenha recebido críticas mistas, ele ganhou um status cult entre os fãs de terror, em parte devido à fidelidade ao conto original de King e ao desempenho de Corey Haim como Marty, que se tornou um dos ícones juvenis do cinema dos anos 1980.

Impacto Cultural

A Hora do Lobisomem talvez não seja tão conhecida quanto algumas das obras maiores de King, como O Iluminado ou Carrie, mas certamente deixou sua marca no gênero de terror. A combinação de uma narrativa ágil, personagens complexos e a atmosfera de uma cidade pequena sendo lentamente devastada por uma força sobrenatural é um exemplo do domínio de King sobre o gênero. Ele consegue não apenas assustar, mas também fazer o leitor refletir sobre temas mais profundos, como a moralidade, a perda de controle e o poder da fé.

A novela também demonstra a versatilidade de King, que consegue transitar entre os diferentes subgêneros do terror com facilidade, desde o horror psicológico até o horror físico e sobrenatural. A Hora do Lobisomem é uma homenagem à lenda do lobisomem, mas com um toque distintamente kingiano: uma exploração da escuridão interior que reside em todos nós.

Conclusão

Stephen King transforma a clássica lenda do lobisomem em uma narrativa envolvente e aterrorizante em A Hora do Lobisomem. Com uma estrutura única, personagens complexos e temas profundos, King nos entrega uma história que vai além do simples horror sobrenatural, explorando questões humanas como a loucura, a perda e a luta contra os próprios demônios interiores. A força de A Hora do Lobisomem está não apenas no medo que provoca, mas na forma como desafia o leitor a refletir sobre o que realmente significa ser uma "besta".

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